“Qual é o valor da água para você?”. Foi com essa pergunta que o professor de geografia Marcio Francisco Martins começou uma jornada de mais de 8.380 km, 6.207 deles percorridos em cima de uma bicicleta, por 13 estados do Brasil.
A viagem de 11 meses realizada em 2016 resultou em um documentário com seis episódios lançados nesse mês de março. O último deles vai estar disponível na internet nesta segunda-feira (22), Dia Mundial da Água. Os vídeos são uma parte do projeto Pedalágua que, segundo Marcio, tem o objetivo principal de fomentar o debate ambiental e a discussão sobre o uso consciente da água, esse recurso que é tão vital para todos nós.
Além do documentário, o professor também está produzindo um material didático para ser usado pelos professores que quiserem abordar o tema nas salas de aula.
“Eu fiz um livro agora com cinco atividades que podem ser aplicadas nas escolas porque eu acredito que a gente só vai se conscientizar sobre a questão da água se tivermos consciência coletiva, não adianta eu falar que vou economizar água para mim, porque a água não tem dono, ela evapora e chove quando ela quer e não temos controle sobre isso. Então eu fiz esse material didático que vou concluir até o fim do ano e distribuir para os professores, de forma gratuita, para quem quiser usar. Porque hoje a gente tem a educação ambiental na lei, mas não tem na prática.”
No entanto, o mais curioso dessa aventura é que abordar a importância da água não era o foco da viagem do professor quando ela começou a ser planejada em 2012. Marcio conta que nas férias de julho daquele ano ele decidiu que queria viajar e realizar o sonho de conhecer a Floresta Amazônica.
“Eu tinha lido um livro de uma enfermeira aposentada neozelandesa que atravessou a Transamazônica de bicicleta na década de 70. Ela viu uma propaganda do governo militar, porque eles faziam propaganda no mundo inteiro de que eles iriam construir a maior rodovia do mundo, atravessando a floresta e ela comprou uma bicicletinha, com cestinha, bem simples e desceu em Manaus para fazer essa travessia, só que a Transamazônica nem existia, mas mesmo assim ela fez essa viagem, foi uma aventura. E eu pensei se ela, uma senhorinha conseguiu isso na década de 70, por que eu não conseguiria agora?”
A ideia do professor era tirar fotos de onde passasse para poder ter mais experiências para passar para os alunos durante as aulas de geografia.
“Eu trabalhei com foto um período, antes de ser professor, e sempre quis conhecer a Floresta Amazônica, então minha ideia era tirar fotos e poder melhorar minhas aulas, então fui fazendo esse projeto e a ideia era fazer a viagem em 2015, mas bateu uma indecisão, mas no fim decidir ir e comecei a ver a questão financeira. Consegui uma pessoa que comprou meu carro em dezembro, que era o valor que faltava para a viagem, e sai de Bauru de avião no dia 3 de janeiro de 2016 com destino ao Pará”, lembra.
Só que enquanto Marcio estava planejando os últimos detalhes da viagem no final de 2015 aconteceu um dos maiores desastres ambientais do país até então – o rompimento da barragem de Fundão em Mariana (MG) – que além das 19 mortes, teve um impacto ambiental sem precedentes e praticamente destruiu o Rio Doce. Também no mesmo ano, o estado de SP viveu um dos momentos mais críticos do abastecimento com o consumo do volume morto do reservatório da Cantareira.
“Cheguei em Altamira (PA) e comecei a viagem com todas essas informações na cabeça sobre a água e eu achei que ia ter muita chuva lá, afinal eu estava na Floresta Amazônica. Mas não choveu, em 15 dias que fiquei lá, choveu em dois dias e as pessoas começaram a falar que não estava mais chovendo como chovia antes. E isso começou a me preocupar bastante.”
A ideia de discutir o valor da água como enfoque do projeto surgiu depois de uma conversa com um morador de uma área de caatinga no Pará. Marcio pediu para usar a sombra de uma árvore na propriedade desse morador que ofereceu um copo de água, direto de uma cisterna.
“Quando eu cheguei na casa, o morador, o seu Inácio me ofereceu comida, mas eu disse que precisava só de água e ele encheu minha garrafa direto da cisterna e comentei com ele – “Seu Inácio o senhor está rico, cheio de água aqui” – e ele disse que num ia nem falar para mim o valor da água para ele porque eu vinha de São Paulo e não entender. Quando ele me falou isso, sobre o valor da água, me fez pensar.”
“Lembrei que a gente estava com o problema de falta de água em SP e esse senhor retira água da chuva da calha, retira água de todo canto da casa e se preocupa com isso, com o valor da água. Foi aí que pensei – eu vou fazer um projeto ambiental e perguntar para as pessoas qual é o valor da água para elas”.
Foram quase 50 pessoas ouvidas durante esses 11 meses de viagem em várias partes do país. A saída da pedalada foi na Concha Acústica que fica ao lado do Rio Xingu no dia 10 de janeiro e terminou no dia 9 de dezembro de 2016 em Jaú (SP). No percurso, o professor passou pelos estados do Pará, Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, alagoas, Bahia, Espirito Santo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo.
Caiaque no Rio Doce
Durante a viagem, Marcio deixou de lado a bicicleta em alguns momentos, foram 2.173 km percorridos de ônibus, trem e com caronas e 559 km feitos de caiaque. Isso mesmo, uma parte da aventura sobre a importância da água foi feita dentro dela.
O professor pode ver de perto o impacto que o rompimento da barragem Fundão em Mariana (MG) causou no Rio Doce. O trajeto de Mariana até a foz do rio em Regência (ES) foi feito 9 meses após a tragédia ambiental.
A expedição pelo Rio Doce que recebeu o nome de Remalama e é o tema do quarto episódio do documentário produzido pelo professor.
“Essa descida pelo Rio Doce mudou a minha vida e todo o projeto, porque depois disso eu posso te afirmar categoricamente que a não dá para viver sem água. É impossível. Os relatos nas margens do Rio Doce são os mais tristes. Todo mundo que falava comigo chorava, porque são ribeirinhos que perderam o modo de vida deles. Foi um negócio tão único que num tem nem Jurisprudência, a gente não sabe como proceder. Depois veio Brumadinho, onde morreram 270 pessoas e o Rio Doce fica esquecido. Só que o impacto do consumo dessa água a gente vai ver daqui muito anos.”
Documentário
Além da descida pelo Rio Doce, o documentário traz outros 5 episódios. No primeiro, Marcio conta o começo da aventura e viagem pela Rodovia Transamazônica, além de apresentar a proposta do projeto que é discutir o valor da água e como cada um de nós podemos pensar como governantes e o que podemos fazer para conciliar crescimento econômico e preservação ambiental.
No segundo e no terceiro episódios da série, Marcio conta um pouco do que viu da maior obra em curso no país para levar água para áreas mais secas do Brasil, que é a transposição do Rio São Francisco. O professor conta que no contato com as pessoas que vivem nessas áreas pode ver a diferença do valor da água para o povo da Caatinga, quando pode comprovar como ele mesmo cita na apresentação do episódio, a veracidade da frase de Euclides da Cunha de que “o nordestino é, antes de tudo, um forte”.
“Onde não tem água, como nos trechos que passei no estado da Paraíba que vai ser beneficiado por dois trechos da transposição, o valor da água está muito relacionado ao dinheiro. A situação econômica deles é muito diferente daqui, eles têm um valor aquisitivo muito menor, então se você pergunta o valor da água, eles respondem aqui custa R$ 5, o caminhão-pipa, R$ 60, porque eles precisam pensar nesse valor todos os dias. No sudeste as pessoas já respondem que é vida, é muito importante, tem que preservar, só que num dá para mensurar se quem fala isso realmente economiza esse bem, se preocupa enquanto ainda tem. O povo do Nordeste, da Caatinga realmente sabe o que não ter água.”
“Qual o valor da água da Cantareira?” é o tema do quinto vídeo. Sobre isso, Marcio fala que quase no fim da jornada, quando retornou para o estado de SP esperava encontrar o reservatório da Cantareira vazio, depois de um ano do uso do volume morto. Mas, foi surpreendido com a imagem do reservatório repleto de água.
“A minha ideia era quando chegasse à Cantareira e tivesse seca, eu ia mostrar para todo mundo que no Nordeste, eles não têm água e aprenderam a economizar o que tem. Só que chego no fim de 2016 e ela está cheia. Meu primeiro pensamento foi que tinha perdido um ano de trabalho. Mas, então eu decidi estudar o regime hídrico do reservatório e isso está abordado nesse quinto episódio. Fui para Avenida Paulista entrevistar as pessoas para saber o quanto elas tinham se sensibilizado um ano depois de consumir o volume morto. E das 15 pessoas que entrevistei, todas disseram que estavam economizando água, então agora vamos ver nos próximos invernos como fica a situação.”
Já no quarto e no sexto episódios, o último o que será lançado nessa segunda-feira, o professor aborda o impacto das duas maiores tragédias ambientais do país – o rompimento das barragens de Fundão em Mariana, em 2015, e de Brumadinho, em 2019. Com os vídeos, ele levanta o questionamento sobre o risco ambiental da atividade de mineração.
“Em 2019 eu fui para Brumadinho e também durante 20 dias captei as imagens que fazem parte desse último episódio que vai ser lançado hoje e fiz um alerta sobre a questão da mineração, especialmente para o estado de Minas Gerais. Nesse século 21, cinco barragens se romperam no país e todas no estado de Minas. A distância de Mariana a Brumadinho é de 129 km.”
“A questão ambiental no Brasil é muito séria, primeiro a gente uma emissão de CO2 gigantesca com as queimadas na Amazônia e a mineração com uma das bases da economia brasileira e ninguém está preocupado com as vidas e com os impactos ambientais que isso vai causar. Então a intenção de todo esse trabalho é fazer as perguntas e colocar as pessoas para pensar”, destaca.
Dia Mundial da Água
Além do lançamento do último episódio do documentário, o professor participa de duas lives com o tema “Qual o valor da Água para você?” neste Dia Mundial da Água.
A primeira no Instagram do projeto Pedalágua, a partir das 15 horas, com a mediação do coordenador de Meio Ambiente e Agricultura de Piratininga, Bruno Chies.
Já às 19h, Marcio participa da live promovida pela Fatec de Jaú que será transmitida pelo canal do Youtube da unidade.
(Por Mariana Bonora/G1 Bauru e Marília)
(Fotos: Marcio Francisco Martins/Arquivo pessoal)