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Os ovos azuis em sapatinhos pretos

Sandra Miessa publica artigo inspirado na vida da jornalista cândido-motense Malu Mota, que por 30 anos trabalhou com o empresário João Carlos Di Gênio, diretor do Grupo Objetivo e Unip

Por Sandra Miessa

Na década de 1950, o jovem Vicente vivia na Água do Bacião, lugarejo na área rural de Cândido Mota, no Estado de São Paulo.

Cândido Mota é o Gigante Vermelho da região, devido à terra avermelhada tão propícia à agricultura. O município é fronteiriço ao Estado do Paraná. É vizinho a Assis, que é a Cidade Fraternal do Estado e a Princesinha da Sorocabana, a estrada de ferro que levou o progresso pelos trens.

Cândido Mota cresceu ao redor de uma pequena igreja e cercada pela doce água de córregos e de rios importantes, como o imenso Paranapanema. Derramou-se à beira do Ribeirão Macuco.

Macuco é uma ave solitária e astuta. Gosta de terra molhada, por isso vive próxima a nascentes e riachos. Costuma andar por trilhas abertas pelos humanos na floresta, talvez para enxergar melhor os perigos. Aninha-se em grotas nas encostas de pedras para tentar proteger a si e aos filhotes.

A fêmea bota ovos azuis. Pai zeloso, o macho aquece o ninho com o próprio corpo e cria os filhotes com muito cuidado.

Mesmo chamando a atenção pela beleza, os ovos azuis conseguem ficar disfarçadinhos entre as folhagens da Mata Atlântica, para enganar os tontos dos predadores.

Muito inteligente, Vicente não se conformava muito facilmente com os nãos. Quando surgia um problema, gostava de encontrar soluções inovadoras. E dizia: “Espere um pouco, preciso estuciar.”

Vicente vivia mesmo estuciando. Inventava equipamentos ou utensílios, apesar dos poucos anos de estudos. Mais do que plantar, dedicava-se a realizar o beneficiamento dos produtos.

Quando conheceu Carmem, caiu de amores. Namoraram. Casaram. Os filhos foram nascendo. Os meninos Orlando e Eduardo. As meninas Fátima, Rosana e Lucinha.

Já morando com a família na cidade de Cândido Mota, Dona Carmem cuidava da casa, costurava como podia, tentava amenizar as dificuldades da vida diante dos filhos.

Lucinha era uma menina sonhadora. Vivia encasquetada com casulos, borboletas, coquinhos de palmito. No desenhar das nuvens, enxergava as formas da vida. Para ela, a pequena igreja era uma catedral. Era sagrado ir à missa.

A criançada brincava com o que estivesse à mão. Bonecas de pano. Bolas emboladas em meias. Galhos de árvores viravam cavalinhos. Latas de óleo de cozinha eram sapatos de metal. Bolas de gude brilhavam no quintal. Cinco Marias era o jogo dos saquinhos com arroz.

Roupas e sapatos iam passando entre os irmãos. Um mesmo chinelinho ia parar nos pés de cada criança. O jeito era ficar descalça mesmo. Sapato melhorzinho servia para ir à escola e à igreja.

Lucinha tinha somente um par de sapatos. E era de couro preto. Quando recebeu a caixa, a garotinha percebeu que um deles era brilhante, e o outro, nem tanto.

Lucinha perguntou ao pai por que os sapatos eram diferentes. Vicente olhou e ficou estuciando.

E respondeu que talvez o sapateiro tenha se empenhado demais em lustrar um sapato, mas, extenuado, adormecera sobre o próprio cansaço. A loja entregou o par sem se dar conta do esforço desmesurado do homem.

Lucinha tinha o hábito de colocar os dedos entre os lábios e de olhar para o alto quando se mostrava pensativa. Então pegou a caixa no colo. Com dó do sapateiro, a garotinha abraçou os sapatos como se fossem bonequinhas de ninar.

Aos nove anos, estava chegando o dia da Primeira Comunhão de Lucinha. Dona Carmem criou um vestido branco para a filha. O tecido era de fustão, com casinhas de abelha. A gola era alta e fechada. As mangas, longas. A mãe fez questão de forrar, um a um, os botões do vestido.

Uma amiga recém-casada emprestou o véu branco e curto do traje de noiva. Dona Carmem compôs um diadema de flores, que prendeu o véu no alto da cabeça de Lucinha.

Mas havia uma questão dentro da cabeça da menina. Os sapatos pretos, então mais velhinhos e apertados, não combinavam com o lindo vestido. E as pessoas perceberiam a falta de brilho de um dos sapatos. Chorosa, a garota foi conversar com o pai.

Seu Vicente passou a olhar para o alto, como se pedisse ao Sol para jogar luz sobre o assunto. E então disse: “Lucinha, pense que você flutua como aquelas nuvens ali no céu. Imagine que os sapatos servem para proteger os seus pezinhos, como se fossem ovos azuis. Você desenhou uma trilha sobre o riacho, com um triscado do pezinho, e a água tirou o lustro do sapato. Eu vou pedir ao fotógrafo para não revelar os seus pés.”

Na fotografia da Primeira Comunhão, Lucinha parece um anjo, com um vestido de fustão branco, desenhando casinhas de abelhas e adornado por um véu de noiva sob um diadema de flores. Um anjo com as mãozinhas em prece.

Flutua por sonhos em comunhão, pelo suor de um sapateiro, pelas mãos costureiras de uma mãe e pelo zelo de um pai. Um pai que fez de tudo para abrigar a filha nas encostas anuviadas e evitar uma predadora decepção.

Sandra Miessa é jornalista, professora, reitora geral da Unip no Brasil (27 campi), diretora-presidente do Grupo Unip-Objetivo e colaboradora voluntária de O Diário do Vale

Jornalista Malu Motta (à dir.) com a reitora Sandra Miessa, diretora-presidente do Grupo Unip-Objetivo, em evento em que ambas receberam prêmio do Sistema de Ensino Objetivo

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