Aplicando uma técnica inovadora da biologia molecular ainda pouco adotada no Brasil, pesquisadores descobriram alvos do parasita Schistosoma mansoni que podem ser eficazes como candidatos vacinais contra a esquistossomose.
Conhecida como barriga d’água, a esquistossomose é considerada uma das 17 doenças tropicais negligenciadas (DTNs) no mundo, afetando cerca de 200 milhões de pessoas em 74 países, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). No Brasil estima-se que sejam 6 milhões de infectados, principalmente em Estados do Nordeste e em Minas Gerais.
Os cientistas usaram a técnica conhecida como phage display – que consiste em trabalhar com vírus (chamados de fagos) que se proliferam em bactérias como vetores para expressar peptídeos ou proteínas do parasita. Com isso, foi possível expressar 99,6% de 119.747 peptídeos do parasita, atingindo uma cobertura abrangente do proteoma do Schistosoma mansoni.
O resultado do trabalho, publicado na revista NPJ Vaccines, do grupo Nature, é uma sequência de outro estudo que havia desvendado o mecanismo pelo qual macacos rhesus (Macaca mulatta) desenvolvem naturalmente uma resposta imune duradoura contra a doença. Essa resposta leva à autocura após um primeiro contato com o Schistosoma e possibilita que o organismo do animal reaja rapidamente a uma segunda infecção – isso por meio da inibição, pela defesa imune do primata, de certos genes do parasita (leia mais em: agencia.fapesp.br/37161).
“O phage display não havia sido utilizado com esse objetivo para uma doença parasitária. Normalmente, nesses casos, as pesquisas pré-selecionam alguns alvos para testá-los como candidatos vacinais. Nesse trabalho, olhamos para as 12 mil proteínas do Schistosoma ao mesmo tempo e identificamos quais foram alvejadas pelos anticorpos dos macacos, seja após a infecção inicial ou reinfecção e autocura, o que é um diferencial. A técnica e o modelo do estudo são inovadores”, afirma o pesquisador Murilo Sena Amaral, do Laboratório de Ciclo Celular do Instituto Butantan.
Amaral é autor do artigo ao lado do professor Sergio Verjovski Almeida, também do Instituto Butantan e professor do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP).
Ambos têm apoio da FAPESP (15/06366-2 e 20/01917-9), que também financiou bolsas a outros pesquisadores do grupo, incluindo a primeira autora, a doutoranda Daisy Woellner Santos (19/09404-3, 18/18117-5, 19/02305-0 e 16/10046-6).
Metodologia
Para rastrear a resposta imune de dez macacos rhesus infectados pelo Schistosoma mansoni durante as fases de autocura e resistência à reinfecção, os cientistas usaram a imunoprecipitação de fagos seguida de sequenciamento (PhIP-Seq, sigla em inglês para peptide library-based Phage ImmunoPrecipitation), uma técnica na qual uma biblioteca de fagos é usada para expressar todas as proteínas do parasita.
O estudo foi feito em macacos rhesus, que desenvolvem naturalmente uma resposta imune duradoura contra a doença (foto: acervo dos pesquisadores)
Os pesquisadores construíram a “biblioteca” – que codificou 119.747 peptídeos representando todas as proteínas do parasita – a partir das sequências das 11.641 proteínas conhecidas nos diversos estágios de vida do Schistosoma. Com base nessa biblioteca, foi feita uma triagem dos anticorpos de macacos rhesus coletados na pesquisa anterior em diferentes momentos das fases de autocura e reinfecção. O objetivo era isolar e identificar os alvos do parasita atingidos pela resposta imune do macaco.
Identificaram na fase inicial da infecção parasitária epítopos significativamente enriquecidos de proteínas extracelulares do parasita – conhecidas por serem expressas no sistema digestivo do hospedeiro. Na fase tardia da eliminação do Schistosoma, foram identificadas proteínas intracelulares, liberadas em decorrência da morte do verme. Os epítopos são a menor porção de antígeno com potencial de gerar resposta imune.
Os peptídeos foram então analisados com ferramentas de bioinformática para identificar potenciais candidatos a vacinas. A partir disso, os pesquisadores realizaram um ensaio de proteção vacinal, que consistiu na imunização de camundongos com um conjunto selecionado de peptídeos exibidos em fagos enriquecidos no PhIP-Seq. O resultado foi uma redução significativa da carga de vermes nos camundongos imunizados.
“Há quem defenda que não dá para fazer vacina contra a esquistossomose. Porém, nossas descobertas melhoram a compreensão das respostas imunes e abrem perspectivas promissoras para o desenvolvimento de uma vacina eficaz. Trabalhamos com as 12 mil proteínas de todas as fases do ciclo de vida do Schistosoma e conseguimos apontar os alvos mais reativos”, explica Almeida à Agência FAPESP. O pesquisador destaca que a técnica também pode ser usada para outros tipos de parasita.
Em maio deste ano, o grupo publicou um trabalho que revelou uma maneira de “separar” o “casal” de vermes causadores da esquistossomose. Isso porque o S. mansoni só consegue sobreviver na corrente sanguínea do hospedeiro se estiver com a fêmea vivendo dentro do macho para, assim, produzirem e liberarem os ovos. No estudo, ficou demonstrado que o silenciamento de um tipo específico de RNA – os RNAs longos não codificadores de proteínas – leva à separação dos parasitas, o que torna essas moléculas alvos promissores para o tratamento da doença (leia mais em: agencia.fapesp.br/41663).
Casal de vermes da espécie Schistosoma mansoni (foto: acervo dos pesquisadores)
A contaminação
Doença parasitária ligada a baixas condições sanitárias e falta de saneamento básico, a esquistossomose é transmitida quando o indivíduo infectado (hospedeiro definitivo) elimina os ovos do verme por meio das fezes humanas. Em contato com a água, os ovos eclodem e liberam larvas que infectam caramujos (hospedeiros intermediários) em água doce.
Após quatro semanas, as larvas abandonam o caramujo na forma de cercárias. Ao entrar em contato com a água contaminada, o ser humano adquire a doença pela penetração ativa das cercárias na pele.
Na corrente sanguínea, as larvas perdem a cauda e tornam-se esquistossômulos, que amadurecem e se transformam nos vermes adultos. São eles que seguem para veias do intestino. Os primeiros sintomas da doença aparecem entre duas e seis semanas após a infecção.
O diagnóstico é feito por meio de exames laboratoriais das fezes. Já o tratamento para os casos simples é a dose única de um medicamento chamado praziquantel, descoberto no início dos anos 1970 e distribuído pelo Sistema Único de Saúde (SUS). No entanto, o medicamento não dá uma proteção continuada e o indivíduo pode ser reinfectado, além de já terem sido reportados casos de resistência parasitária.
“O próximo passo é encontrar uma formulação vacinal adequada, que contenha adjuvantes e um novo mecanismo de entrega desses antígenos de forma que gere uma proteção maior no hospedeiro. Temos alguns alvos com nível de resposta maior”, afirma Amaral. Agora o Butantan está em processo de registro da patente das descobertas do grupo ligadas aos possíveis alvos vacinais.
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) vem trabalhando há anos e realizando ensaios do que pode ser a primeira vacina no mundo contra a doença. Em fase de testes, a Schistovac contém a proteína modificada Sm14, presente no Schistosoma. Normalmente, essa proteína desempenha um importante papel no transporte de gorduras vitais para as funções celulares do parasita, mas, ao ser modificada, impede a proliferação.
O artigo Schistosoma mansoni vaccine candidates identified by unbiased phage display screening in self-cured rhesus macaques pode ser lido em: www.nature.com/articles/s41541-023-00803-x. (Colaborou Assessoria de Imprensa – Luciana Constantino/Agência Fapesp – Imagem: CDC/Wikimedia Commons)